quarta-feira, outubro 24, 2007

A um amigo,

Certa vez, aos meus dez anos, li em um livro muito famoso a seguinte frase: "Você é responsável por aquilo que cativa". A princípio estava um pouco entusiasmada com as figuras e ilustrações que o livro trazia, um príncipe vestido de branco em cima de uma bola na qual queriam representar o planeta. Achei engraçado como simplificavam tanto as coisas, fiquei me perguntando como é possível não cairmos para a amargura do vácuo se há pessoas cobrindo todo o perímetro da bola-planeta, algumas até de ponta-cabeças (notei quando virei o livro e percebi que o príncipe permanecia em pé, segundo a ilustração, e que, portanto, nós também deveríamos permanecer em pé). Talvez meu primeiro contato com a ciência, um contato cru, mas que me causou vontade de reler após certo tempo. Na segunda vez que li, já compreendia os mecanismos conhecidos da gravidade. A figura pouco me causou interesse, estava em época de interpretar o mundo pelo que os símbolos escritos dizem. Quando a frase citada acima passou pelos meus olhos novamente, senti certa graciosidade ao tê-la compreendido (dentro das minhas limitações). Julguei justo, julguei a mecânica da vida como bela e justa. Inocente, inviável, utópica, porém, justa.
[...]
Não é romantismo de viver, antecipo, mas muitas pessoas que conheci morreram. Seus corpos ainda permanecem intactos , talvez até mais fortes e eternos do que aqueles tempos. Seus corpos não foram consumidos por nenhum verme, nenhum organismo abocanhou as estruturas de carbono que externamente molda e aprisiona a falácia de dentro. Muitas pessoas que eu amei morreram. Às vezes as vejo perambulando pelas ruas, com os mesmos carbonos de outrora, um pouco mais gordas, um pouco mais magras, mas com almas monstruosamente diferentes e estranhas à minha velha forma de amá-las. É então quando fixo um olhar triste, buscando provocar, mesmo que por um único segundo, a reencarnação daquela velha alma, a ressurreição da cumplicidade que até pouco tempo parecia imortal. Mas morreram. Abaixo a cabeça, e tento então compreender todas as leis da natureza, revisar cada dinanismo darwiniano, pra enfim me convencer que não é só o corpo que morre. Continuo em frente, tropeçando em passos largos e cheios de mágoa, sem olhar pra trás. Respiro com pausas melancólicas, e juro aos cem demônios que se algum dia acontecer de novo, atravessarei a rua.
[...]
Mas aconteceu. Estava eu passando pela avenida do esquecimento, pelas curvas retilíneas, surreais da memória, pelos semáforos vermelhos, e no mesmo lado da rua vinha vindo um fantasma, em que só reconheci o plástico cobrindo as entranhas. "É o Josias, meu melhor amigo!", e a fisiologia toda pôs-se a trabalhar: pupilas dilatando, coração mais forte, músculos irrigados, velhos sonhos competindo com o inconformismo. Não atravessei a rua, talvez em último sopro de vida as primaveras tivessem florido esperança, a luz ao fim do túnel nocauteado o desprezo. (É engraçado como apenas nos conformamos que alguém morreu quando há um defunto escancarado com os lábios frouxos, múmia com as mãos cruzadas sobre o peito, tom pálido e quase imaterial, pronto para voltar à cadeia alimentar e nutrir a terra da forma mais primitiva). Senti o vento da sua matéria passando por mim, aquele falso cheiro aprisionado de risos e graça que eu conhecia tão bem. Mas os olhos, os olhos desviados e com um tom que eu jamais pensara ver, os olhos pervertidos perante o compasso daquela velha inocência, os olhos tão sujos, mudos e irreconhecíveis. O vento foi rápido e nefasto, os olhos alcançaram qualquer coisa em volta para não serem condenados. Assim, continuei com passos largos, com a certeza de que a morte não é somente mera conseqüência de se estar vivo, mas também uma escolha em deixar de viver para alguém. Foi o primeiro contato de morte que eu tive, tão assustador quanto um defunto seco e gelado. E depois desse, vieram tantos outros.
[...]
Em meu crânio descansam abraços que jamais serão repetidos, amizades e olhares que eu já me esqueci. Em minhas memórias decompõem-se sofismas que nunca serão verdades. Tenho um cemitério compassando com genocídios explosivos que adormecem nas entranhas da minha mente, um mundo de estranhos que em outros tempos me eram tão calorosos.
A mecânica da vida, essa mecânica que gera seivas tão injustas. Sim, hoje julgo injusto. Ao menos, a morte material é parte de um ciclo cheio de beleza e graça. Ora, morrer não é injusto! -é perfeitamente coerente. Nada mais equitativo que ser devolvido à terra e recompormos a cadeia alimentar. O cosmos todo é assim, e conhecemos essa condição desde que somos cuspidos para fora de um organismo.
O injusto é morrer estando vivo. É tornar-se um estranho a alguém que já portou nos olhos brilhos tão vivos. Que fez viver, que se permitiu cativar. Não é romantismo de minha parte, já sinto-me velha e eutanasiada pra ter as mesmas aspirações límpidas da época embrionária. Simplesmente, de vez em quando alguma arteríola em mim ainda pulsa nesse cemitério que empilho, mesmo que fracamente e silenciosamente, um pouco da coerência de Ser que só tive naqueles meus dez anos (quando ainda folheava livros com frases justas e delas recebia justiça).

domingo, julho 15, 2007

Como é bom pensar em nada!

Como é bom pensar em nada! Como é bom em nada pensar! Se em nada penso.. então, estou pensando? Vejas! Há muito mais nisso do que a vã sabedoria do saber. O que eu sei de saber? O que o saber sabe de mim? E se ele nada sabe, então o que sei eu?
Ah! Como é bom pensar em nada. O sol é sol, as flores são flores, pela primeira vez, tudo é, e não me vem mais aquela idéia de que tudo pode vir a ser! O sol aquece, eu sinto. As flores colorem, eu vejo! Da onde vieram, o porquê vieram, que importa, se eu sinto e vejo? De não pensar é que eu sei. Se pensasse, estaria querendo saber o que eu não sei! Nada saberia, nada importaria, porque apesar de todos os saberes de todas as ciências, eu nunca saberei. E sempre restaria um vazio nas cores das pétalas, sempre haveria uma interrogação no brilho do sol. Sempre as sombras do inexistente, sempre o insignificante que toma forma, e por nossa própria ignorância do saber, passa a existir, substituindo tudo o que realmente é, tudo o que realmente existe antes do mundo ser mundo. E se não era mundo, não quero saber! Porque estaria vendo o mistério, o mistério de nada, que se esvai pela estrada de nada e em nada morre. Quero a cor mais intensa, quero o calor mais ardente. Quero isso, porque isso existe, porque eu vejo e sinto. Qual a graça de todos os mistérios do cosmos e do vácuo se não sentirmos nem o cosmos nem o vácuo? Que graça têm as duzentas, oitocentas, bilhões de estrelas se esforçando no céu pra serem vistas, se a única pergunta que resta é "da onde vieram?". Eu vejo as estrelas, eu sinto as estrelas, elas existem, mesmo que a luz que chega aos meus olhos seja relíquia do que não há mais nos céus.
Eu vim de um útero enrugado, saí por um orifício envolto por pêlos diversos, ser verde beirando ao roxo, vomitando pelas entranhas líquidos das mais diversas origens. Certamente, se eu contar de onde vim pras estrelas, elas deixarão de brilhar pra mim, porque serei eu, hoje pele rosada e sorriso enfileirado, serei eu ainda fruto do útero enrugado pendurada numa tripa umbilical. Que graça terei? Depois disso, ao lembrar de mim, as estrelas da sabedoria imaginariam um feto mal corado, chorando as dores do mundo. Quero as estrelas como são, quero as pétalas como estão, e o sol como o sol de hoje. Quero ser, quero existir, porque é neste hoje que estamos ou não. Quero pensar em nada e em nada permanecer com plenitude. Quero saber de nada, questionar nada, duvidar de nada, e por isso saber de tudo, e por isso ser, e por isso serem.
Quero cerrar os olhos e sentir, quero ver o que vejo, quero ser sem filosofias, quero ser, quero que as coisas sejam, e mais nada.

domingo, abril 22, 2007

Ansiedade

Não era noite, não era nada. Ai, os pézinhos tocando o chão, silenciosamente, um a um. Os tacos do piso contorciam-se pra não entregar essas falanges que o pisoteavam. Tudo minucioso, delicado, traçado. Como é bonito o silêncio - arte que faz boa obra em qualquer um.
A respiração contada, pausada, o ar milimetrado. E vai, prende só quatro moléculas, e solta, apenas três.
- Vão descobrir!
O silêncio foi quebrado. E então uma olhadela de soslaio foi lançada. Aqueles olhos que falam por si só, que faz um rebanho de touros deitar no travesseiro com lacinho no chifre.
- Tá, não falo mais nada, mas você vai ver... tá acontecendo.
Com volúpia, o dedo indicador alcançou os lábios, e um pequeno sopro demonstrou que já era hora de calar. O batom vermelho denunciava a indiferença perante a situação. A cor paixão cobria os pequenos cortes da boca, transformando cadáver em tom rosado.
- E se não for tão simples assim?
É notável como a insegurança torna flácida as feições das pessoas. Deforma o pigmento dos olhos, amortece as pálpebras, faz tudo parecer mais do que realmente é. Dessa vez, o melhor realmente era calar.
Já com uma das sombrancelhas elevadas, o ódio ficou evidente. O silêncio é um espetáculo discreto, e aquele que devolve ao mundo mais moléculas que o necessário, não é merecedor desse ar. As regras são claras. Ai, as regras são bem escuras.
- Ouvi passos. Céus, vamos sair logo daqui.
E novamente, nada foi dito. A pupila dilatou, a adrenalina sujou os pulsos, as mãos começaram a querer atropelar alguma garganta. Mas eram as regras, o silêncio de sua ira permaneceu na gruta do acústico interno.
Com os olhos semiabertos, dessa vez o indicador esquerdo foi elevado aos lábios. Isso não era bom, a paciência já estava curta. Piscou delicadamente com o olho direito, e depois, voltou-se à saída. Os pézinhos retornavam, um a um, fazendo trilha sonora sobre o piso de madeira. Dessa vez, pisavam fundo, e os tacos já não conseguiam manter silêncio, cantarolando rítmos e mais rítmos seguidos. O coração também participava da orquestra - batucava em harmonia perfeita com os pézinhos. As fossas nasais davam um toque especial na apresentação, atuando com o ar tortuoso das narinas. Maestro é o suor das mãos, a indicação de que tudo vai começar, o organizador do todo.
Pronto. O silêncio foi rompido. Agora acordemos que o chá esfria na mesa, o jornal espera ser compreendido, o sol denuncia que já é hora de gritar. Veste a roupa logo que a buzina do carro está soando. Hoje a musicalidade vai ser bonita, temos gases de diversas cores no ar pra tornar a respiração mais profunda, em doce compasso com o resto do caos.

quarta-feira, abril 11, 2007

Tititi

Queria que as palavras soassem livremente do meu âmago, queria poder ter a disposição de pensar e ser construtiva. Pensar já dói, na verdade bom seria contar a vocês sobre o Joãozinho, sobre o final da novela, o meu tênis novo. É o que procuramos, é o que eu vejo todos os dias entre os dois olhos de cada um. Não me livro dessa, sou parte do circo. Apenas minha forma de 'titizar' é um pouco diferente. E é isso que estou fazendo. Mas não assisto novela, meu tênis está um trapo, o Joãozinho não existe. Então, o que me resta é contar as coisas de uma forma um tanto quanto diferente.
Confesso que tenho preconceito às idéias externas. Que meus ouvidos são preparados pra não vibrar ar, não alterar o potencial dos meus neurônios, enfim, não transmitir o som para dentro da minha caixa lacrada. Desprezo até que me provem o contrário. Minha maior virtude é saber reconhecer isso. Mas tenho explicações. E é disso que eu quero falar.
A menina está feliz. Penteia os cabelos longos, ainda recordando o final do Big Brother, questionando-se a injustiça do público em eleger tal ganhador. Logo, o frescor da manhã invade as fossas nasais, purificando o cérebro, e formando um vácuo entre os caminhos neurais. Jorra adrenalina, os pulsos esfriam, a barriga faz cócegas internas, o rosto fica rosado. É o Joãozinho! Ontem, ele estava de jeans, camisa Levi's, perfume boticário. Desfilava num carro que parecia conjunto harmonioso com aquele sorriso branco, enfileirado. "Ai que lindo!", e veio também a endorfina, contaminando os neurônios que ainda estavam esperando utilização.
Pega ônibus, conta pra amiga, o ônibus todo passa a conhecer Joãozinho.
Chega na faculdade. Aluna exemplar, toda a matéria estudada, todos os exercícios prontos, toda a disposição no meio daquele resto de adrenalina. Conhecimento empírico intacto, o cérebro como simples instrumento de memória, como sanguessuga que parasita, engole tudo sem filtrar nada. Vai na biblioteca, namora livros dos autores mais demodês das ciências, come palavras, come conceitos, enquanto o próprio intelecto sofre autofagia, digerindo a si próprio, desesperado pelo vácuo ainda deixado pela manhã. A memória trabalha, o pensamento, não.
Chega em casa. Está cheia de pensar! Estruturas, leis, composições, teorias, que confusão, como é complicado ser inteligente!
Encosta a cabeça no travesseiro. Repassa mentalmente todo o ninho empírico que adquiriu durante o dia. E entre uma cadeia de carbono e outra, vem aquela adrenalina, a lembrança do Joãozinho. Dorme. Amanhece. Nada mudou.

Perdoem-me. Mas é assim que vivem. É assim que eu vejo as pessoas todos os dias, alienadas em chupar conceitos, vomitar conhecimento, inibir inteligência. Assim é fácil ter a pele bonita, o sorriso constante, a fadiga distante. O corpo livre de agentes que intoxicam (o verdadeiro pensar), mas também, escravo do consenso.
O que eu quero dizer é que desprezo essa forma de ensinar, de aprender, de viver. Passamos a ser robôs, fantasmas que não questionam, não criticam, não pensam. O verdadeiro conhecimento está na própria massa cefálica, no emprego que damos a ela. Conhecimento não tem nada a ver com inteligência. Estou cheia de ver exercício de memória, e emburrecimento de consciência.
Somos humanos, é saudável qualquer tipo de futilidade. É essencial decorar livros e conceitos. Mas há muito mais que isso. É importante saber. O mais importante, é ter sabedoria.

terça-feira, março 20, 2007

Indecisão

Vou falar de tudo, mas logo chegarei ao nada. Ninguém entenderá, porque antecipo que dedico essas linhas à minha agonia. O escape da noite eterniza esse vácuo, dá até cenário pro inexistente. Não quero mais ser um humano! A única liberdade que tenho é a de escolha, e a minha hora dessas já se tornou funil no vácuo: filtra o nada, escorre o nada, purifica o nada. E então, tudo o que tenho no meu "béquer" são migalhas de sonhos dispersos. E logo uma nova experiência, a reação, que já não é nova, é tudo tão velho...
Vou falar dessa fossilização negra-clara embaixo dos meus olhos. Que o sol torna mais evidente, ai como eu odeio o sol! É sinal de que devo esticar as pálpebras de encontro a testa e caçar borboletas coloridas logo cedo. E fico, fico, fico. O sol se põe, e ainda estou lá. Satisfações rasgam o meu escárnio, corro, corro, corro mais. Já é hora de cansar. Hora de pintar o fóssil negro que descansa em meus olhos. E tento eu descansar. Tento eu abdicar da minha humanidade, essa liberdade de escolha que me torna diferente dos outros quadrúpedes animalia.
A vida está tão certa! Planos, fico, corro, canso.
Na manhã seguinte o sol, o exercício das pálpebras, corro pra ficar, fico pra correr.
Amanheça lua! Me desperte as estrelas! Sol é alarme falso.
Era pra clarear um dia, e no entanto prateia meu fóssil negro no sul ocular.
Chove pétalas! Andem as árvores, desça as nuvens. Mas por favor, sol, traga-me a fúria das minhas veias!
A respiração acusa que é hora.
Ou vai, ou fica.
Corro, fico, corro, e agora?
Agora o trem já partiu.
Só amanhã. O sol avisa. As pálpebras esticam. Ai, dói!

sábado, março 10, 2007

Conivência

Naquela cova rutila um morto semi-material. Tão bonitinho, os cabelos ainda enrolados pelos vermes que transpassam por cá e por lá. Levanta, o morto, e vai passear no fresco da manhã. Que olheiras delicadas! O roxo sustentando a base do rosto, o reflexo da morbidez lírica. E vai, em passinhos curtos, arrastando-se com os carpos e a fíbula desarticulada do esqueleto. Que angelical! Ele sorriu! Na boca, os dois dentes tingidos de negro transluzem em harmonia com o vômer quase exposto. Se engraça todo, perde a cabeça, porque agora ela já não lhe é mais grudada no corpo. Ai, como encanta! O crânio em meio às tulipas, reflexo prismático dos raios do sol. Cada partícula de luz bate no etmóide, vaga entre os seios nasais, e é expulso em forma de arco-íris pela mandíbula, pintando arte por entre o vento. E que linear as suas suturas! Mais parecem traços geometricamente calculados!
Como é belo o morto. Como é doce a sua calamidade, a preguiça de quem descansa na eternidade. Até parecem os cemitérios galerias de obras reais!
E naquela esquina, uma criança. A fome, a palidez, os ossinhos das costelas expostos um a um. Como é bonito, a criança! Ai de mim, que arte em humanos! E olha aquela órbita, até deságua gotinha por gotinha em compasso perfeito de dor! É tão bonito que passa até na televisão.
A dona lança um suspiro, lamenta por segundos, e entre uma agulhada e outra do crochê, se põe na terrível dúvida entre carne assada ou ensopado para o almoço.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

A mulher das cavernas

Doce mulher das cavernas! Passaste tanto tempo contemplando as paredes desse abrigo obscuro, adormecendo no calor do teu peito uma família irreal. E o leite é miragem, porque a criança que davas a vida nunca existiu. Doce mulher das cavernas, olhai a luz, o rei sol, que mancha com brilho o fundo da tua morada. Viras o corpo, dai meia volta, e caminhe para onde aquelas mãos não te tocam! Deixaram-na, pura e com lágrimas a derramar, partiram para os duelos do superficial. Agora alcance a tua espada, finque na terra seca, a fim de aguar as poças do desespero com esses teus olhos tão fundos. Mulher das cavernas, penteai os cabelos, esses fogos que em brasa alcançam a luz. E caminhe, passos largos, para a luz maior. Como é vazio contemplar de costas a parede rochosa, que desgasta e não reconstrói. Vira, vira meia volta, o mundo é seu [...]
E contam sabre o mito da caverna, desde os tempos de Platão.
Prisioneiros acorrentados, os pescoços algemados de modo a olhar apenas para aquela semi-obscuridade. O único feixe de luz que adentra a caverna permite que as sombras do mundo externo se projetem nas paredes do fundo. Assim, tais sombras passam a ser o real para os olhos dos acorrentados, e não podem saber que há seres humanos fora da caverna, pois não podem virar-se em direção à saída.
O que aconteceria se libertassem os prisioneiros? Que faria um prisioneiro libertado?
Primeiramente se cegaria com a luz, mas caminharia em direção a ela. Prosseguindo no caminho, enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda a sua vida, não vira senão sombras de imagens e que somente agora está contemplando a própria realidade.
Em atitude de libertar os outros prisioneiros, voltaria para dentro da escuridão, ficando desnorteado, e contaria aos outros a grandeza que contemplou. Ninguém acreditaria em sequer uma palavra, e a liberdade adquirida morreria nos colchões de sua própria honra [...]
Libertai das correntes, mulher das cavernas! Não leves ninguém contigo, porque os homens são cegos demais pra acreditar nas grandezas que teus olhos vêem. Aquieta-se, mas caminhe, caminhe sempre em direção à luz, e abandone os presos pelo veneno da própria inconseqüência.
Lá fora há mãos sólidas, segure-as, beije-as. Por fim, apague o sol que projeta as sombras na caverna, e deixe-os festejar, apodrecer na escuridão - que adormeçam nos cemitérios da própria ignorância!

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Já faz muito tempo que perdi a inspiração. Não sei se estou crescendo, ou morrendo. Talvez tenha me conformado que o céu é azul e que, por mais que eu tente, nunca vou conseguir tingí-lo de dourado. O céu é de todos, alguns gostam do azul. Acho que somos como pérolas da mesma cor, da mesma forma, e só brilha quem quer.
E eu cansei de tentar encontrar um brilho na múltidão do colar de contas, aquela luz que eu invento perante os meus olhos, mas que não existe - é onda eletromagnética sem massa, sem vida.
Meus amigos, isso não é pessimismo. Não quero preencher o vazio que todo humano porta na alma com o vazio da mente. Talvez simplesmente insistimos no mesmo jardim, que não floresce nem no primeiro semestre, nem no segundo. Mas regamos, com a água do suor, com cada gota que pinga e escorre dos olhos. Quem já foi na mais perfeita botânica jamais vai querer voltar à plantação de trigo. E eu só vou em sonhos e em crenças sofismáticas, porque a vida é tão surreal.
Isso não é decepção. Longe de mim, meus caros, não tenho nem meia-vida. É apenas uma confissão que quero ser como vocês, parte do mundo e das pessoas, e não reformadora.
Mas sabem, o sangue corre forte. E algo pulsa tão forte que ejeta da garganta, eu preciso vomitar. Algo dentro de mim não se anestesia com essa superficialidade, e então, eu grito.
"Abdico da minha humanidade."
Pelo contrário, abdico da desumanidade. As pessoas se tornaram parafusos metálicos e maciços, que simplesmente giram para o mesmo lado na hora de dar as voltas. A superficialidade é desumana. A robotização do homem também. Não é mais simples encontrarmos humanos, o que vejo são máquinas de idiotização ou aquelas em que é só colocar um dinheirinho que funciona.
Cadê a alma, o cérebro, a capacidade de crítica?
Isso arde.
Passo o dia com a frase de uma velha música na cabeça:
"We don't talk about love, we only want to get drunk".
Oh yeah, mutcho loucos.
E vazios.

terça-feira, janeiro 09, 2007

Ser humano

No dia em que eu for enfim organismo, pra onde vão as flores que desenterraram o meu peito? Onde adormecerão as idéias, iluminação minha, que mal contei ao mundo?
Plante árvores. Escreva livros. Na verdade há formas de ser imortal. Tem gente que é gente e não existe. Tem gente que não é gente e compreende a existência. Confuso entender que para nós liberdade é a razão e sentimentos, e para os bichos, o instinto. Estes, pintam a aquarela da vida. Nós, borramos.
No dia em que eu for cálcio em rochas, pra onde vão as minhas verdades, cada partícula de sonho que libertei na inspiração?
Os bichos são pra virar nitrogênio. A planta fixa, o boi come, nós comemos o boi. Os bichos servem pra dar continuidade à vida. Nós servimos pra manter a vida. Pra virar nitrogênio, já há muitos bichos, de diversos sabores, gostos. Os decompositores têm alimento em excesso. Assim o mundo vai bem, obrigada.
Mas pra manter , pra manter há poucos.
Muitos são os que querem sonhos, razão, sentimentos, idéias, tudo em barras de ouro. São muitos os que querem solidificar o eterno em riqueza mesquinha.
Pra onde vai a alma que não partence à minha consciência? Esse suspiro, que engorda a respiração, que por fim me torna humana entre bichos?
Sou bicho, posso ir e vir, nascer e morrer.
Sou humana, posso amar e pensar, escolher e viver.
Posso morrer. Mas antes de cerrar as pálpebras e ver o céu em salmão, me tornarei real. Deixarei minha alma no mundo, vagando com as minhas obras, os meus sentimentos, a minha verdade. E quem sabe, a iluminação que um dia eu hei de ganhar se fixe em outra alma viva.
Assim, e só nesse dia, deixarei de ser bicho.
Me tornarei humana.