sábado, março 10, 2007

Conivência

Naquela cova rutila um morto semi-material. Tão bonitinho, os cabelos ainda enrolados pelos vermes que transpassam por cá e por lá. Levanta, o morto, e vai passear no fresco da manhã. Que olheiras delicadas! O roxo sustentando a base do rosto, o reflexo da morbidez lírica. E vai, em passinhos curtos, arrastando-se com os carpos e a fíbula desarticulada do esqueleto. Que angelical! Ele sorriu! Na boca, os dois dentes tingidos de negro transluzem em harmonia com o vômer quase exposto. Se engraça todo, perde a cabeça, porque agora ela já não lhe é mais grudada no corpo. Ai, como encanta! O crânio em meio às tulipas, reflexo prismático dos raios do sol. Cada partícula de luz bate no etmóide, vaga entre os seios nasais, e é expulso em forma de arco-íris pela mandíbula, pintando arte por entre o vento. E que linear as suas suturas! Mais parecem traços geometricamente calculados!
Como é belo o morto. Como é doce a sua calamidade, a preguiça de quem descansa na eternidade. Até parecem os cemitérios galerias de obras reais!
E naquela esquina, uma criança. A fome, a palidez, os ossinhos das costelas expostos um a um. Como é bonito, a criança! Ai de mim, que arte em humanos! E olha aquela órbita, até deságua gotinha por gotinha em compasso perfeito de dor! É tão bonito que passa até na televisão.
A dona lança um suspiro, lamenta por segundos, e entre uma agulhada e outra do crochê, se põe na terrível dúvida entre carne assada ou ensopado para o almoço.

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