segunda-feira, setembro 29, 2008

Descontentamento

Noite passada adormeci exausta, flutuando entre um sonho cansado e uma realidade pouco paupável. Nenhuma novidade. Todos os sonhadores são exaustos. Os únicos que não sonham são os que já descansam as quimeras de uma vida inteira. São os mortos. Os vivos, mesmo que fazendo a cruzadinha enquanto acomodados sobre o vaso sanitário, sonham (os gordos com o fim de tarde na padaria, os pobres com a casa própria, os ricos com centenas de casas próprias, os pensadores com o silêncio, o desocupado com a próxima novela, o poeta com a libertação, o religioso com a vida pós-morte, [...] ).

E assim começa a mesma história de dois olhos cegos, um pulmão elástico, o suspiro de um vencido que ainda não se convenceu.

Amanhece. Que hei de encontrar? Um campo de trigo remexendo-se graciosamente ao vento, um príncipe em seu cavalo da coorte, borboletas esnobes contrastando suas cores com tulipas e lírios? Fadas da minha imaginação, da onde vêm esses desejos? Nascemos, e a primeira imagem perante nós é um mundo de ponta cabeças, quando segurados pelos pés no hospital. O primeiro som é o próprio berro que atropela os tímpanos, perde-se na cóclea e soma-se ao próximo esperneio. Depois, a face de todos os humanos conhecidos da família aparece perante o berço. Narizes de impetuosos tamanhos, olhos gigantes devoradores, dedos primatas apertando as bochechas e bocas soprando dicções estranhas. Crescemos, e o cenário de beleza desconhecida não muda muito. Ao invés do campo de trigo, há o asfalto seco. Ao invés do príncipe, há o maltrapilho. Ao invés de borboletas coloridas, há maripozas cinzas. Com o passar dos anos, a surdez, as dores nos trapos, o tom inválido do mundo.

E apesar de tudo isso, ao fechar os olhos, ainda sonhamos com os mesmos campos, príncipes e borboletas. Passamos o dia em uma realidade que não nos pertence, possuímos o mundo inteiro antes de levantar da cama (mas, se me permitem a metáfora desataviada e amadora, ao pegar o ônibus todas as manhãs noto que somos todos os mesmos macacos pendurados - com uma breve luzinha fosca querendo crescer nos olhos).

De onde vem toda essa perfeição inexistente?
De onde vem toda essa vida não vivida?
Há um sonho melhor que o do outro? Há um sonho mais valioso que outro? Quanto? Pode pagar por ele (em dinheiro ou vida vivida)?

Ai de mim! Quanta audácia! Por quê não o gordo sonhar com a casa própria? O pobre com o fim de tarde na padaria? O poeta com o silêncio? O desocupado com a libertação? O religioso com a próxima novela? O pensador com a vida pós-morte? [...]

Talvez queiramos todos a mesma coisa. Talvez queiramos de tudo um pouco. Há quem não queira nada, mas até mesmo esses querem algo por nada querer. Há quem tudo quer e nada tem. Mas há quem tudo tem e nada quer?

Sempre haverá uma minúcia qualquer fora do lugar. Um riso mal devolvido, uma anedota mal contada. Uma mão esticada contorcendo o rosto ao fim do dia - "Ora, podia ter sido melhor!".