terça-feira, março 20, 2007

Indecisão

Vou falar de tudo, mas logo chegarei ao nada. Ninguém entenderá, porque antecipo que dedico essas linhas à minha agonia. O escape da noite eterniza esse vácuo, dá até cenário pro inexistente. Não quero mais ser um humano! A única liberdade que tenho é a de escolha, e a minha hora dessas já se tornou funil no vácuo: filtra o nada, escorre o nada, purifica o nada. E então, tudo o que tenho no meu "béquer" são migalhas de sonhos dispersos. E logo uma nova experiência, a reação, que já não é nova, é tudo tão velho...
Vou falar dessa fossilização negra-clara embaixo dos meus olhos. Que o sol torna mais evidente, ai como eu odeio o sol! É sinal de que devo esticar as pálpebras de encontro a testa e caçar borboletas coloridas logo cedo. E fico, fico, fico. O sol se põe, e ainda estou lá. Satisfações rasgam o meu escárnio, corro, corro, corro mais. Já é hora de cansar. Hora de pintar o fóssil negro que descansa em meus olhos. E tento eu descansar. Tento eu abdicar da minha humanidade, essa liberdade de escolha que me torna diferente dos outros quadrúpedes animalia.
A vida está tão certa! Planos, fico, corro, canso.
Na manhã seguinte o sol, o exercício das pálpebras, corro pra ficar, fico pra correr.
Amanheça lua! Me desperte as estrelas! Sol é alarme falso.
Era pra clarear um dia, e no entanto prateia meu fóssil negro no sul ocular.
Chove pétalas! Andem as árvores, desça as nuvens. Mas por favor, sol, traga-me a fúria das minhas veias!
A respiração acusa que é hora.
Ou vai, ou fica.
Corro, fico, corro, e agora?
Agora o trem já partiu.
Só amanhã. O sol avisa. As pálpebras esticam. Ai, dói!

sábado, março 10, 2007

Conivência

Naquela cova rutila um morto semi-material. Tão bonitinho, os cabelos ainda enrolados pelos vermes que transpassam por cá e por lá. Levanta, o morto, e vai passear no fresco da manhã. Que olheiras delicadas! O roxo sustentando a base do rosto, o reflexo da morbidez lírica. E vai, em passinhos curtos, arrastando-se com os carpos e a fíbula desarticulada do esqueleto. Que angelical! Ele sorriu! Na boca, os dois dentes tingidos de negro transluzem em harmonia com o vômer quase exposto. Se engraça todo, perde a cabeça, porque agora ela já não lhe é mais grudada no corpo. Ai, como encanta! O crânio em meio às tulipas, reflexo prismático dos raios do sol. Cada partícula de luz bate no etmóide, vaga entre os seios nasais, e é expulso em forma de arco-íris pela mandíbula, pintando arte por entre o vento. E que linear as suas suturas! Mais parecem traços geometricamente calculados!
Como é belo o morto. Como é doce a sua calamidade, a preguiça de quem descansa na eternidade. Até parecem os cemitérios galerias de obras reais!
E naquela esquina, uma criança. A fome, a palidez, os ossinhos das costelas expostos um a um. Como é bonito, a criança! Ai de mim, que arte em humanos! E olha aquela órbita, até deságua gotinha por gotinha em compasso perfeito de dor! É tão bonito que passa até na televisão.
A dona lança um suspiro, lamenta por segundos, e entre uma agulhada e outra do crochê, se põe na terrível dúvida entre carne assada ou ensopado para o almoço.